Língua e poder
O Globo em 6 de agosto de 2007
Por Denis Lerrer Rosenfield
A manipulação da língua é um símbolo do exercício autoritário do poder. As palavras são usadas discricionariamente, segundo o arbítrio dos governantes que pensam que podem tudo fazer. Como as aparências são superficialmente guardadas, pode-se ter a impressão de que o estado de direito está sendo conservado quando, na verdade, está sendo quebrado. A questão quilombola é um exemplo de uma mentalidade autoritária que se esconde atrás de uma suposta luta pela igualdade racial.
O art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias estipula que: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Em bom português, segundo o Houaiss, quilombo é um local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos, uma povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna (onde também se açoitavam índios e, eventualmente, brancos socialmente desprivilegiados). Tratase de um lugar onde escravos fugidos se abrigavam, o que supõe uma unidade territorial habitada, longe dos centros urbanos por uma questão de defesa. O Legislador de 1988 pensou evidentemente nesta definição ao redigir o art. 68 e não em uma outra, que poderia ser aleatoriamente inventada. Ele falava português.
Ora, o Decreto 4.887, de 2003, é um ato administrativo do presidente da República, que não poderia regular um dispositivo constitucional, que exige uma lei complementar. O arbítrio começa aqui. Mais grave, no entanto, é o fato de ele utilizar uma outra definição de quilombo, algo que não estava pensado, nem poderia estar, em 1988. Eles teriam sido os futurólogos de novas invenções. Em seu art. 2o o Decreto estipula: § 1oPara os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. O conceito de quilombo utilizado pelo decreto e pelos movimentos sociais em geral perde o seu significado de povoação, unidade territorial, para significar uma genérica comunidade de cor, de cultura, de sentimentos e afinidades.
Sob essa definição, quilombo significa todo descendente de escravos em qualquer lugar, sem nenhum vínculo territorial. Se o decreto presidencial utiliza uma outra definição, baseada, aliás, na autodefinição, ele usurpa claramente a função legisladora. O presidente se coloca como legislador acima da Constituição.
A utilização de novos critérios, ditos científicos, não tem nada a ver com o que foi pensado e definido por uma Assembléia Constituinte.
Ou seja, militantes, que se dizem antropólogos, e políticos comprometidos com uma causa, e não com a verdade, tornam-se os verdadeiros constituintes. A referência à Constituição é uma mera fraude que se torna legal pelo ato arbitrário de um decreto presidencial. Não bastasse isto, há também Igrejas internacionais (Norwegian Church Aid (NCA), World Council of Churches (WCC), Church World Service (CWS), Christian Aid, United Church of Canada (UCC), Church Development Service, The Primates World Relief and Development Fund (PWRDF)), a Fundação Ford e a própria União Européia que financiam ONGs voltadas para a questão quilombola, como é o caso da ONG Koinonia. Será que essas ONGs e seus apoiadores financeiros nacionais e internacionais se tornaram também os nossos novos Constituintes? Outros países, fundações e igrejas passaram a demarcar o nosso território? São eles os portadores da nova definição, da recente boa nova, que vai determinar o novo mapa brasileiro? Já há um novo mapa. Elaborado pela Universidade de Brasília, a pedido do governo, ele serve como orientação para as ações do Incra e para as invasões.
Uma fatia significativa do território nacional será, então, literalmente recortada. O MST, contudo, considera esse mapa desatualizado por incluir apenas 2.260 comunidades, que, segundo a autodefinição, já remontariam a 4.000. O Brasil presencia um outro tipo de inflação, a de quilombolas, que não pode ser controlada pelo Banco Central! Quando nem a língua é mais respeitada, é porque o autoritarismo progride. A usurpação e a deturpação se tornam a nova regra. A serviço de quem?
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